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Há história no Sana Silver Coast Hotel | Por Jorge Mangorrinha

26/12/2024

No final do século XIX, surge um grande edifício destinado a hotel, por causa da grande afluência de forasteiros às Caldas da Rainha. Passa a ser o espaço de eleição para aquistas mais endinheirados e para a realeza e corte, que se alojam nele quando se deslocam para banhos no hospital termal. Como eles, também artistas, escritores e políticos. O hotel afirma-se como um dos símbolos urbanos locais e de convívio entre visitantes e elites caldenses. Há bailes, saraus e peças de teatro, que se mantêm até quase ao encerramento. Presentemente, nascido no mesmo local onde, durante mais de um século, existiu o Grand Hotel Lisbonense, o Sana Silver Coast Hotel recupera o charme dos tempos antigos e introduz a modernidade em novos espaços e serviços.

 

Em pleno centro das Caldas da Rainha, o Sana Silver Coast Hotel deu uma nova alma a um antigo edifício do século XIX, que foi o Grand Hotel Lisbonense. Do velho edifício ficaram três fachadas e o gradeamento da frente, e ainda recordações através dos objetos do hotel original, fotografias, loiças, livros, cartas manuscritas e recortes de jornais. O grupo Sana Hotels é constituído por “um conjunto de conceitos exclusivos em que cada hotel tem a sua própria personalidade e sabores”, refere-se nas plataformas digitais.

 

Acerco-me de um edifício retangular, com massa disposta horizontalmente e cobertura amansardada. A fachada principal foi desenhada com três panos e três pisos separados por molduras e com janelas retas de bandeira e curvas nas trapeiras. O gradeamento é lanceolado. O portão de ferro forjado tem as letras VCAP e a data 1890. Desde sempre me lembro deste edifício enquanto criança e adolescente, e mais as recordações dos tempos do seu encerramento e das várias tentativas de recuperação.

 

O Grand Hotel Lisbonense foi durante uma centena de anos o local de eleição para forasteiros, incluindo quem se deslocava para fazer o circuito medicinal ou visitar a Fábrica de Faianças e Praça da Fruta (mercado diário). Ele estabeleceu uma ligação visual com o grande parque arbóreo, cuja obra é contemporânea à do hotel, daí uma entrada em frente para facilitar a circulação entre um e o outro.

 

A interpretação da origem do nome “Lisbonense” tem trazido alguma polémica, uns acreditam que fosse por causa da sua localização geográfica, ou seja, estar situado na antiga rua Ocidental do Passeio (atual avenida D. Manuel Figueira Freire da Câmara), à entrada da então vila das Caldas para quem viaja desde Lisboa; outros asseguram que se tratou de uma homenagem de Vicente Paramos (proprietário) dedicada à sua mulher, Júlia Xavier Paramos, e um tributo à cidade de Lisboa que o acolheu aquando da sua imigração em Portugal. Vicente Cyriaco Alonzo Paramos tem origem num pequeno povoado de seu nome San Xoán de Paramos, na Galiza, onde nasceu em 1847. No final da década de 1870, a família Paramos chega às Caldas e funda o seu primeiro hotel nas Caldas da Rainha, instalado na rua do Olival de Cima, nº 28 (atual Rua General Queiroz).

 

A vila das Caldas da Rainha afirmava-se como uma das mais populares e concorridas estâncias termais do país, enquanto vivia um período de assinalável progresso. De tal forma eram afamadas e requisitadas estas termas, mas com carências, que, em agosto de 1886, Ramalho Ortigão escreve, sintomaticamente, em “As Farpas”: “A linda vila das Caldas da Rainha é o centro de vilegiatura que em Portugal mais se parece com as terras de águas francesas e alemãs. Não tem, certamente, a Trinkhalle magnífica, nem a esplêndida Conversations-haus de Baden; não tem Cursaal de Wiesbaden, com o seu pórtico jónico, a sua arcada rodeada de lojas de luxo, e o seu grande salão, de galerias sustentadas em colunas de mármore, revestido de estátuas de Carrara; não tem teatro, não tem sumptuosas salas de concerto e de biblioteca; não tem galeria de pintura, nem galeria de antiguidades, nem grande hotel”.

 

Nem grande hotel, de facto…

Em 1879, Marie-Lætitia Bonaparte-Wyse, conhecida como princesa Rattazzi, visita Portugal e as Caldas, em particular, e reitera essa perceção: “As Caldas não têm um hotel. Enganei-me, tem um só, o hotel Paulo, que deve servir de albergue ao diabo quando ele viaja.” Em junho de1887, Francisco Gomes Amorim relata que a vila tem “mais o Hotel Lisbonense do Sr. Vicente Paramos, onde me alojei por 1 200 réis diários.” Esta viagem seria publicada na “Revista Ilustrada” (1890). Em setembro, um cronista do “Correio da Noite” escrevia acerca de uma vila com hotéis e casas de hóspedes caros e sem comodidades (17 de setembro de 1887).

 

A 1 de junho de 1889, finalmente, o novo Lisbonense abre aos seus clientes. Presume-se que a data 1890 se refira à construção do gradeamento e do portão e à finalização plena do empreendimento na sua primeira fase. Inicialmente, o hotel tinha duas retretes por piso, tal como se confirma nas plantas antigas e em conversa com o investigador Vincent Martins. Dentro dos quartos, estavam um simples lavatório de ferro, um penico ou bacio e um jarro. Em contrapartida, os salões de refeições de mesas corridas, louceiros e os candeeiros e castiçais apresentavam faustosas decorações e esmero no serviço. Havia uma copa com um elevador manual. Nos primeiros tempos, não havia água quente a correr das torneiras, então, era preciso aquecê-la, porque o único hotel da localidade com essa oferta era o Madrid, porque captava um veio de água termal. No Lisbonense, quem quisesse banho quente tinha de o requisitar previamente e pagar um acrescento à conta – “O banho está servido”, informavam as funcionárias aos hóspedes.

 

Um jardim privativo, um grande varandim, palmeiras e um lago com peixes eram complementos muito apreciados na parte traseira virada a poente. Junto ao jardim, havia uma horta e uma vinha que abastecia o hotel. As uvas eram colhidas e preparadas para o vinho da casa, com o selo das Propriedades do Grand Hotel Lisbonense e o nome “Clarete”, que conquistaria, pelo menos, a medalha de ouro na Exposição Agrícola-Pecuária e Industrial (Caldas da Rainha, agosto de 1923).

 

A vila já se constituía como um dos principais centros hoteleiros do país, e o Lisbonense atraía os de maior posse, cuja chegada às Caldas se intensificou com o prolongamento da via-férrea até esta vila (1887). A proximidade geográfica de Caldas da Rainha e Lisboa ajuda a explicar esta preferência dos monarcas e da burguesia por estas termas.

 

Esta era uma unidade hoteleira de primeira água, numa terra onde as águas termais ditavam regras e rituais. O seu promotor conseguiu, com este investimento hoteleiro, que gente abastada encontrasse na vila um local condigno para se alojar, suprindo uma carência que era urgente ultrapassar e constituindo-se como mais um fator determinante na afluência das elites a estas termas. Destacou-se ainda por ser a unidade com maior capacidade, por disponibilizar água quente, possuir um salão de baile e garagem de automóveis própria.

 

Este estabelecimento foi o vencedor do I Concurso de Hotéis da Sociedade Propaganda de Portugal (1908), para premiar os que mais progrediam sob o ponto de vista do conforto e da higiene, ou seja, com retretes e casas de banho de acordo com as regras estipuladas pelo regulamento. O “Boletim da Sociedade Propaganda de Portugal”, num artigo intitulado “Concurso de Hotéis”, noticia que, dos hotéis a concurso, só o Grand Hotel Lisbonense satisfez “inteiramente às condições do concurso” e, por unanimidade, resolveu a comissão do concurso atribuir-lhe o primeiro prémio (200$000 réis) – e passou a ser recomendado.

 

Um visitante estrangeiro relata, com particular perspicácia, o seguinte: “A railway journey of threee-quarter of an hour brought me to the famous medicinal termal watering-place of Caldas da Rainha, where in the excellent Hotel Lisbonense, which the proprietor, one of those frugal, honest, Galegos who are the industrial salt of the Peninsula, told me was the largest in Portugal, as it is certainly one of the best, I ended a long day of overcrowded impressions by a night of delightful dreamless sleep.” [“Uma viagem de comboio de três quartos de hora levou-me às famosas águas termais medicinais das Caldas da Rainha, onde no excelente Hotel Lisbonense, cujo proprietário, um desses Galegos frugais e honestos que são o sal industrial da Península, me disse que era o maior de Portugal, pois é certamente um dos melhores, terminei um longo dia de impressões sobrelotadas com uma noite de sono delicioso e sem sonhos”] (Martin Hume, “Through Portugal”, 1907).

 

O novo século traria a consolidação do termalismo enquanto atividade de saúde e turística de uma estância dedicada, também e desde a sua origem, ao assistencialismo social. A rainha D. Maria Pia, que se deslocava com frequência à vila, sobretudo após a morte de D. Luís, visitou-a em 1905, na companhia do infante D. Afonso, e, em 1907, com a princesa Matilde de Saxe, ficando nesta ocasião hospedada no Grand Hotel Lisbonense. Durante os quase vinte anos de reinado, D. Carlos I visitou as Caldas muitas vezes, tendo sido presença habitual na vila desde criança e, depois, com deslocações, sozinho ou na companhia da rainha D. Amélia e dos infantes D. Luís Filipe e D. Manuel, com alojamento no Lisbonense.

 

Desse início de século, uma imagem traz a memória de viajantes na competição automóvel realizada entre Figueira da Foz-Lisboa, passando pelas Caldas junto ao hotel (1906).Em 1908, Mendonça e Costa regista, no “Manuel du Voyageur en Portugal”, os hotéis Lisbonense, da Copa, Madrid e Caldense, como os principais da vila. Na época, o de maior capacidade era o Grande Hotel Lisbonense, com 110 quartos, enquanto os hotéis da Copa e Madrid se equiparavam um ao outro com cerca de 50 quartos.

 

Ali se fizeram as grandes receções a altos dignatários. Nos seus salões desenrolaram-se intrigas de romances e novelas. Dentro dele, o enviado do Diretório republicano anunciou aos seus correligionários caldenses, a 6 de outubro de 1910, o derrube da monarquia. Grandioso foi o almoço servido no hotel aos congressistas do IV Congresso Internacional de Turismo (1911), por ocasião da sua visita às Caldas da Rainha. O presidente Óscar Carmona esteve em diferentes ocasiões, como, por exemplo, na elevação da vila a cidade (26 de agosto de 1927). O III Congresso Internacional de História das Ciências (2-6 de outubro de 1934), que teve lugar em Coimbra, Lisboa e Porto, contou com a ajuda da comissão caldense na organização de um almoço no hotel, tendo a pretexto desta ocasião inaugurado a comissão, no mesmo local, uma Exposição de Propaganda Turística de Portugal. Na inauguração da estátua da Rainha D. Leonor (15 de setembro de 1935), houve um almoço onde esteve, de novo, o presidente Carmona, com a companhia da comitiva, do cardeal-patriarca de Lisboa, Manuel Gonçalves Cerejeira, e do jornalista da Emissora Nacional, Fernando Pessa.

 

Caldas da Rainha foi um dos locais escolhidos pelo governo para alojar alguns dos milhares de refugiados que, em 1940, entraram no país. Seria um dos paraísos perdidos referidos por aqueles que conseguiram escapar às invasões nazis, mas a sua presença também teria impacto junto dos portugueses. As ruas, os hotéis e os cafés encheram-se de gente com diferentes costumes e modos de viver. Sob a gerência de Paulino de Figueiredo, o Grand Hotel Lisbonense recebeu alguns deles, em que as mulheres fumavam, vestiam saias curtas e não usavam meias. De novo, a cidade preenche-se de novidades. Os hotéis ficam cheios de estrangeiros. Gente de todos os credos políticos e de todas as religiões recolhe ao abrigo de um Portugal tranquilo. Um dos mais conhecidos refugiados foi um célebre pugilista italiano, Tino Clavari, uma estrela de dimensão europeia, com fama de Dom Juan, que treinava no seu ringue montado no Lisbonense, rivalizando a sua fama local com a maravilhosa contorcionista e acrobata Helga Liné, de origem germânica.

 

Em meados do século, eram célebres os bailes de Carnaval, como os de 1944 e 1956, identificados nas imagens, e de Fim de Ano, com os 6 Latinos ou o Conjunto Viegas, noutras imagens mais recentes, que circulam pela rede local.

 

O Grand Hotel Lisbonense acabaria por entrar em declínio na década de 1970, tendo chegado a receber cidadãos das antigas províncias ultramarinas africanas. Após várias tentativas de recuperação que nunca chegaram a ser efetivadas, a reconstrução do edifício, devolvendo-lhe a sua função inicial, foi a condição imposta pela autarquia para autorizar a construção de um centro comercial nas traseiras do imóvel, onde, antes, era um extenso espaço verde pontuado por faustosas palmeiras e pertencente ao hotel.

 

Encerrado no final do século XX – seguindo-se o confronto entre a salvaguarda ou a demolição, numa cidade que tanto subalternizou a sua arquitetura civil mais antiga – acabou por se situar numa solução intermédia, sob o traço do arquiteto e decorador José Barata Duarte. O velho edifício renasceu para a vida, em 2011, com o Sana Silver Coast Hotel, que não só manteve a traça da fachada original e das laterais, como recuperou o espírito dos velhos tempos. Foi inaugurado um mês depois de ter entrado em funcionamento, com uma festa que teve lugar na tarde de 4 de julho, planeada ao pormenor, com duas centenas de convidados, e uma outra de noite para a população em geral, com animação de rua e fogo de artifício lançado do telhado do hotel.

 

Desde o “hall”, tem-se uma visão alargada dos espaços públicos principais – receção, restaurante, bar, vitrinas que guardam memórias e, ainda, um magnífico landau, tipo de carruagem de dois bancos situados frente a frente. Este é uma réplica fidedigna daquele que transportava o rei D. Carlos I quando foi assassinado (1908).

 

Este é um “hotel familiar” de 4 estrelas, que oferece uma experiência aos viajantes de negócios e de lazer ou aos residentes locais que o procuram pela gastronomia, pela esplanada ou para reunir numa das três salas de reuniões em eventos empresariais e sociais. O alojamento conta com 80 quartos e 7 suítes (duas delas com banheira de hidromassagem), com mobiliário executado no Norte pela empresa Fagotel e com muitas memórias do antigo hotel e das Caldas. Há quartos no último piso com vista para o céu. Das outras janelas, vejo coisas que fazem com que continue a achar que os caldenses têm, no Parque, um mundo maravilhoso. Depois do arvoredo, dali se imagina o outro lado, com o mais antigo hospital termal do mundo. E, pergunta-se, quem, noutras coordenadas, não promoveria este centro como um todo, com benefícios mútuos, em que o sossego fosse parte essencial e a folia apenas dada em doses adequadas para não incomodar os hóspedes da hotelaria próxima?

 

O hotel recebe, amavelmente: os casais que voltam, porque os filhos decidem presenteá-los com uma estada onde passaram a lua-de-mel; assim como grupos de excursionistas ou de clubes de futebol, turistas de negócios ou pessoas que apenas entram no espaço para dois dedos de conversa no bar e para almoçar ou jantar no restaurante Lisbonense. Ao domingo, há o Brunch da Rainha, uma experiência requintada sob os auspícios do “chef” Diogo Medalha, que homenageia a Rainha fundadora e a própria cidade, preparado e servido com produtos locais e tradicionais.

 

A diretora do hotel, Susana Ribeiro, nascida nas Caldas da Rainha e formada na Escola de Hotelaria e Turismo do Estoril, proporcionou-me uma amena conversa no bar, enquanto um Beijinho das Caldas (bolo regional feito com ovo e calda de açúcar) adoçava a boca com o café de cheirinho apurado. Seguiu-se uma visita aos diferentes espaços. Nos corredores de quartos, em cada um dos extremos, há manequins em vitrina, que remontam a épocas passadas, nomeadamente, um de fato de banho masculino do início do século XX, ou não se estivesse muito próximos do mar. Era um tempo em que despontava o desejo coletivo da praia, embora as termas e os parques fossem mais procurados, tendência que mudará a partir da segunda parte do século XX.

 

Nesta visita, um bom perfume no ar dos quartos é graças à pulverização que é colocada nos têxteis, uma tendência que começa a ser habitual na hotelaria.

Estamos, enfim, na época natalícia. O hotel e a cidade enfeitam-se. Susana Ribeiro diz-me que o hotel preenche as reservas um mês e meio antes do evento, o que prova a tendência dos clientes nesta época, enquanto se esperam novos começos. E será que a cidade sabe disso e se prepara convenientemente para recebê-los nesta quadra, como, também, durante todo o ano? Se o hotel promove a cidade, creio que a cidade deve ser, metaforicamente, um enorme hotel, onde tudo está no seu lugar e o serviço é absolutamente atencioso e cortês.

 

Patente em alguns quartos, a frase de despedida atribuída a Rafael Bordalo Pinheiro resume o espírito deste hotel e de quem se aloja: “Muito agradecido à gentileza com que fui recebido nas Caldas”. E eu, por sinal, sinto-me em casa…

Fonte: Tnews.pt
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